ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO IX, PALAVRAS 19168-19774
H. abriu os dedos e fechou os olhos. Depois a mão cheia e os olhos fechados e os bolsos cheios e os olhos fechados. A cabeça sob a mão do mercado, sob as unhas metálicas e impiedosas, o escalpe e os fios de cabelo afagados pelos dedos, o queixo levantado à carícia afiada do gancho da grua de cais. Os olhos fechados. De qualquer modo, aquilo era uma só vez uma vez só mais uma vez só uma mais uma só vez mais. Mãos abertas, mãos em concha e os olhos fechados. Os olhos não se podiam abrir. Não se podiam esbugalhar os olhos porque uma certa névoa marítima roía a nitidez das ideias. Os carris rangiam ao peso da mercadoria, os contentores engordavam, ávidos de mercadoria, as mãos abertas, as mãos em concha e o dinheiro mudo e os olhos, por fim, cegos. O galope dos carris era a gargalhada submarina do mecanismo.
H. era assomado por vagas de insónias e acessos de sonos insaciáveis. Não sei quem sou e não me vi nascer. Agora era aquilo e aquilo parecia ser só mais uma inevitabilidade caótica da existência. Não tinham passado mais do que uns tempos mas o velho e os combates eram um longínquo ontem, uma graçola irónica submersa por uma torrente de pontos finais. H. era outro, uma deriva irreconhecível. Mas pressentia uma centelha de algo que se mantinha. Era uma supravigilância, um centro passivo levitante que, do éter, se limitava a observar e, de tempos a tempos, a reportar tu não és tu. Os dias arrastavam o mesmo peso mas distribuído em categorias diferentes. O dinheiro e as coisas que o dinheiro paga dissolveram-se e absorveram-se como cerveja fresca na boca ávida dum trabalhador recostado num andaime sob o sol vertical. E estava tudo tão, tão bem. A senhoria mostrava um sorriso aberto quando via H. Até levantava o braço, acenando, bom dia, vizinho! H. era do clube. Do clube do que pagam as contas, dos que não têm dívidas, dos que vivem de olhos acima do queixo e de queixo levantado; dos positivos, dos Sim, claro que sim, dos que valem. Não dos que valem muito, de qualquer maneira. Mas a senhoria olhava para H. da soleira da porta e abanava os braços dourados. A senhoria estirava na rua. Regressara de uma corrida ou de uma sessão de yoga. Estava dedicada a devolver a tenacidade ao seu corpo. Ainda estava longe de o conseguir. Era notório que fora detentora de uma beleza congénita e pouco original. Talvez nunca a viesse a recuperar. Mas os músculos reapareciam e o sol dourava-lhe a pele, dourava-lhe as pernas e os braços e o rosto de mel recuperara a vaidade nos seus olhos de esmeralda. Ela falava como o velho dinheiro e com uma espécie de doçura muito certa de si. Uma doçura que não se justificava nem pedia. Nesse sentido, aquilo trazia-lhe uma nobreza verdadeira. Estirava os músculos e fingia não saber que H. a espreitava entre as portadas ou que escolhia aqueles momentos para ir à caixa de correio. Ela dobrava-se e esticava os braços e chegava com a ponta das mãos às pontas dos pés e o cabelo era uma cortina pela qual se antevia o decote e o peito que subia e descia, subia e descia.. H. observava-a com a gula de um adolescente e ia, com a mão, percorrer a extensão da sua vontade. Achava que ela o tinha visto mais do que uma vez. Ele escondera-se atrás das portadas entreabertas e podia jurar que a vira a sorrir, estirando os músculos, deixando cair as mamas sobre os joelhos.