ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO IX, PALAVRAS 19775-20608

Não demorou a ter a senhoria na cama, saudando o sol com o seu tesíssimo pénis na boca. Ela fazia aquilo com um apetite livre de correntes. Tinha a flexibilidade dum instrumento de precisão e articulava os movimentos como se dançasse. E gritava e gemia e nunca ninguém diria que ela gritava e gemia daquela forma. Quando se esticava, o umbigo ficava em forma de amêndoa e a barriga em forma de horizonte e H. gastava a saliva toda da boca, entre o pescoço e a vulva. Vinham-se e ela ficava e ele fazia mais dois negronis e fumavam na cama e abriam a janela para que o sol lhes secasse a pele.

Depois houve um problema num dos navios que levava um contentor com aquilo. Um dos tripulantes ouvira qualquer coisa sobre aquilo e terá tentado encher os bolsos à extorsão. E então? Então, ainda não sei de mais nada… o navio ainda está a caminho e as comunicações tornaram-se difíceis.. um dos nossos disse que ia tratar de tudo.. aliás, disse que já estava tudo tratado mas não sei o que terá feito, de facto.. Achas que o…? Ouve, miúdo, estas coisas acontecem em alto mar.. eles contam os contentores mas não contam os tripulantes.. Estás a dizer que..? Não estou a dizer nada! saberemos mais, quando chegarem a… O tripulante estava morto e fora atirado borda fora em alto mar. H. soubera-o quando a senhoria lhe levara o jornal não é aqui que trabalhas? No jornal, dizia que vários membros da cartilha tinham sido preventivamente detidos mas não se fazia menção a D. conhecias estes…? Não.. não conhecia. Sabias que estas coisas..? Não! claro que não! e isto pode trazer-me problemas, grandes problemas.. Porquê? estes tipos são.. quero dizer, tu não tinhas maneira de saber! O meu trabalho é saber, caralho! Desculpa, eu… Sai. preciso de pensar, preciso de pensar. Ela saiu e H. não voltou a aparecer nas docas. Tentou telefonar a D. mas a linha estava sempre interrompida. Passou semanas a espreitar entre as portadas. Não abria a porta a ninguém e a senhoria trazia agora o semblante da chuva. Quando lhe ligavam das docas, atendia muito depressa. H. estás melhor da tua…? precisamos de ti aqui, principalmente depois de.. H. não sabia se eles suspeitavam dele. Talvez não suspeitassem. Se suspeitassem, já me tinham vindo buscar reconfortava-se H.

D. acabou por ligar. Não te preocupes! mas nunca voltes a pôr lá os pés, arranja outra coisa para fazer.. inventa uma coisa qualquer.. de qualquer modo, estamos seguros. Ninguém sabe que eu estava nisto era notório o orgulho de D. e, se ninguém sabe de mim, ninguém sabe de ti.. bem podes agradecer, fui eu que te ocultei o rasto.. bem, talvez seja melhor nunca mais falarmos.. nunca mais tentes ligar-me e se me vires, olha para outro lado, percebeste? Sim.. mas se me..? D. desligou. H. escondeu a cabeça entre os braços. Serviu-se de vermute e sentiu a súbita aceleração do sangue nas artérias e do vermute no gargalo e da garrafa sôfrega por se esvaziar. Entregou-se à solidão e ao medo. Só saía à noite e o mundo rodopiava à vertigem de uma culpa esmagadora. Não respirava em plenos pulmões há semanas e escondia a cara como um fugitivo. Emagreceu mais de dez quilos e a comida pesava-lhe na boca e a boca não salivava e os dentes estavam laxos. A língua não tinha vontade de sabores e as cores eram uma paleta de cinzentos e sépias velhos.

Mas D. voltou a ligar. Desta vez, H. não se conteve. O tipo está morto, não está? Estás maluco, pá? estás a perguntar-me isso por aqui? ninguém está morto, ouviste? está tudo controlado.. aliás, se quiseres voltar eu consigo arranjar-te um… H. desligou e respirou como se tivesse duas caixas torácicas. Saiu para comer e viu a senhoria a dobrar a esquina. Atrasou o passo e o sol que ainda brilhava era a faúlha de vida mais densa que já vira. Sentiu um alívio de quem emerge de uma apneia forçada. Outra vida pensou. Vomitou num canteiro e limpou a boca à manga. Outra vida agora disse-o.

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