ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VIII, PALAVRAS 18384-19167

Serayva não queria combater e H. voltara às docas. Carregar contentores era um trabalho fácil e o salário não era mau. As cargas chegavam durante a noite, de combóio ou de camião. Chegavam e eram seriadas e agrupadas por peso. Os contentores eram atrelados por tractores de terminal até ao pátio portuário. Os mais pesados entravam primeiro nos porões para servirem de base aos outros. A pouco e pouco, pilhas de contentores eram erguidos pelos braços atléticos das gruas. Tonelada sobre tonelada, desenhava-se a verticalidade do desejo do Homem. Urgia pegar num pedaço da Terra e levá-lo para outro lugar, fazer a vontade às febres do mercado. Mas nunca ninguém falou com o mercado, embora o auscultem através de aparelhos, grelhas e metodologias do faz-de-conta. Também nunca ninguém conheceu o mercado mas não faz falta conhecê-lo, apenas respeitá-lo e evitar enfurecê-lo. Nunca ninguém lhe viu a cara mas é sabido que aquelas gruas de cais são apenas alguns dos seus dedos incontáveis e das suas inúmeras unhas. Sabe-se que no rio corre sangue do mercado, repleto de hemácias navais, cada uma com a sua casa das máquinas. O rugido dos motores ia rompendo o vácuo da noite. As sombras das gruas e das empilhadoras de alcance projectavam-se no alcatrão e as carroçarias eram amarelas e negras como a pelagem dos tigres. Tudo lembrava uma coerente selva de metal e borracha e cheirava sempre a fuligem e a solda. As sombras dos homens eram, por vezes, os próprios corpos. Era proibido fumar mas não havia ninguém que não fumasse. Também era proibido beber mas toda a gente sabia que ali se comprava, vendia e revendia de tudo um pouco. Afinal, a vasculatura do mercado quer-se diversa e vivaça, ao limite ruborizado da hipertensão mercantil.

Queres ou não queres? D. parecia ter a voz ligada a um compressor. H. calcorreava, com os dedos, os salários com que, de manhã, enchera o bolso. Não sei, para ser sincero… para ser sincero, eu… como ficou tudo com os supervisores de pesagem…? pareceu-me tudo bastante… Pareceu-te bastante o quê? D. continha um grito, uma raiva estavas à espera que fosse tudo leve e legal e bonito? que viesse escrito no catecismo? foda-se, eles pesam aquilo à entrada e acrescentam uns quilos à folha de pesagem; isto por dez… sim, consegui dez! sabes o que é dez? nada! dez é nada, para estes tipos que são a porta de entrada! depois entras tu e carregas os contentores com o material… carregas, como quem diz… tu supervisionas e os gajos das tarefas carregam até que o contentor pese mesmo aquilo; depois é preciso pagar à tripulação e aos nossos homens à chegada e aí estou de mãos atadas… só o cabrão do desembargador leva cinquenta… ouve… isto é assegurado; nunca dás a cara, a distribuição é do outro lado do planeta… e ninguém te está a pedir nada a não ser que feches os olhos durante vinte minutos, trinta no máximo… achas que eu quero ser apanhado? depois de dez anos? deves estar maluco… só podes estar maluco.. meia hora, no máximo.. e podes ir de férias, ir ver o mundo, comprar um carro, ir às corridas, tirar uma folga da vida… Uma folga da vida ecoou em H. Quanto? O que te disse… Não consigo, não me sobra para a renda e estou a dever quatro… Ouve! as mãos de D. agarraram a cara de H. e pareciam feitas de limalha de ferro e betão depois disto, não tens que te preocupar com a renda durante anos, percebes? estou a oferecer-te liberdade, não entendes? olha para aquilo! Apontava para os corpos dos homens sob capotas de lona, abrigados duma chuva repentina de grossas bátegas e aqueles homens eram a sombra sob a luz azul das docas estou a oferecer-te uma alternativa àquilo, a isto, a isto tudo caralho - achas que alguém gosta de estar aqui? achas que alguém quer trabalhar aqui para sempre? olha! as mãos de lixa apertavam-lhe as bochechas e viravam-lhe o olhar para a realidade. H. empurrou-o não me toques, caralho. Sim? e vais fazer o quê, cabrão? sabes quem eu sou? sabes o que te fazem se isto correr mal? entres ou não no trabalho, estás comprometido, sabes muito, sabes demais… isto corre mal e.. agitou um adeus com as mãos de lixa isto corre bem e não entras? demasiado risco para nenhum ganho, não achas? miúdo… não tens ninguém a quem valer? se não for para ti, não há ninguém neste mundo de merda a quem queiras pagar um copo, melhorar a existência, dar umas fodas…? toda a gente tem um… Foda-se H. tirou os salários do bolso. Abre os dedos e fecha os olhos.

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ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VIII, PALAVRAS 17352-18383

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