ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VIII, PALAVRAS 17352-18383
O velho não quer combater; o velho não vai combater; eu não sei combater e do que sei fazer, quase que não chega para dizer que, de facto, sei fazer alguma coisa; e combater não é uma dessas coisas das quais ao menos sei pouco… e se o velho não quer combater, tem todo o direito a não querer e a não o fazer. Os olhos de H. tinham desistido. Estavam pousados sobre um pedaço de pão que se afogara num copo. O jornal estava desmembrado na sala. Nas páginas, só as pessoas da publicidade sorriam. Nas entrevistas também havia um economista que fingia um sorriso. Tinha os braços cruzados, botões de punho dourados e um corte de cabelo milionário. Era daqueles sorrisos que dizia sucesso, meu caro, sucesso e era tão falso o sucesso como o sorriso. As pessoas sorriem ao desbarato dizia H. em solilóquio as pessoas vendem-se por cada coisa… Nos classificados, as ofertas de emprego tinham o condão de difundir desapontamento em poucas palavras. Eram todas deprimentes e para ontem. Gasolineiro, com experiência, bomba de combustível nome qualquer, na rua tal. Contrata-se soldador de arco eléctrico, homem, 58 horas semanais, turno diurno Ah, sei perfeitamente onde fica esta rua mas sei lá que caralho é um arco eléctrico…; R. B. CAROLIN contrata moldadores e trabalhadores indiferenciados, rua sim, sim, esta também sei onde é, ajudantes de fundição, turnos diurnos e nocturnos, excelente salário e condições laborais, Contratamos estenógrafa, etc etc, departamento de compras e manutenção. Sim, eu consigo ser um moldador, ou um soldador e até um trabalhador indiferenciado; sim, eu consigo; ok, só tenho que me levantar daqui. As páginas do jornal olhavam todas para H. O economista tinha muitos dentes, todos brancos e alinhados. H. passava os dedos nos seus dentes e sentia o carrossel mais triste do mundo. Agora tinha os dentes manchados pelos dedos sujos e passou a língua nos dentes mas não sabia se a língua e a saliva teriam feito o seu trabalho. Engoliu a saliva. Agora tinha os dedos, os dentes e o corpo, os três sujos da mesma sujidade. As caras dos jornais olhavam para H. mas eram mudas e covardes e agora todas sorriam, menos a de um cientista fotografado com a sua bata branca e um crachá. O cientista estava seriamente preocupado com o planeta ou, pelo menos, parecia estar mesmo muito preocupado. Filhos da puta dos cientistas, não fazem mais nada senão apontar! Olha, olha! o planeta está a arder; atenção, cuidado! esta doença está a alastrar-se em trinidad e pode ser uma ameaça para a saúde pública! vê! vejam! vejam bem! encontrei a cura para a doença que se estava a alastrar em trinidad! e o economista diz Que se fodam as pessoas de trinidad, não as encontro no meu ficheiro, na minha folha de cálculo… não são um mercado interessante, nem emergente e teria que andar mais de muito para lá arranjar uma boa cona e bom dinheiro por isso que se foda trinidad e as suas doenças de merda e vai-te foder tu, cientista, olha a cona que arranjei com este penteado e com os meus dentes brancos e alinhados e os meus braços cruzados sobre o meu fato escuro e a minha gravata de patinhos de seda; fode-te, leitor, ajoelha-te e abre a boca ao enorme pau do deus dinheiro, sim, SIM, olha para o meu sucesso, o sucesso cresce-me no meio das pernas e no meio das ilhas caimão; isso, puta, queres um pouco disto? sim? sim? um pouco deste sucesso? isso, querida, caga no cientista; ele conduz um quê? HAHAHA, ok, ok querida, agora fizeste-me rir e o riso não tem preço, não há dinheiro que faça rir a bom rir mas a cara de corno do cientista também não… aquecimento quê? trini quê? casas para quem? saúde pública? serviço público? querida, tira as cuecas e dobra-te, deixa-me tratar do resto… e a boca do economista, estampada no jornal que se ia dobrando à brisa da janela aberta, não se fechava; E H. sentia-se perdido naquelas palavras. Falhaste, miúdo, falhaste, miúdo; falhaste ao velho e o velho falhou-te a ti e a vida foi-te ao cu quando menos esperavas e o outro foi ao cu da Alice quando tu menos esperavas e, por isso, a vida foi-te ao cu outra vez; além disso, fizeste uma série de coisas más, não foi? e agora estão a vir atrás de ti, porque já não era sem tempo; agora vêm atrás de ti e o cabrão do Arbaredo vai foder-se por tua causa e também ele virá atrás de ti e L. L. James talvez te dê o golpe de misericórdia e será a queda do foguetão e toda a gente verá que o propulsor era feito de bicarbonato e vinagre e não de gasolina aditivada; Procura-se cientista-bombista-suicida, pronto a rebentar-se em entranhas e em merda porque só isso seria a expressão verdadeira, genuína, da sua voz, daquilo que descobriu e que preferia não ter descoberto, isso sim, seria algo verdadeiramente importante; se eu fosse milionário, ou menos pobre, juro que colocaria esse anúncio neste jornal e nos jornais todos e nas paragens de autocarro; mas quantos cientistas foram bombistas suicidas? quantos não sei quê foram bombistas suicidas? quero dizer, quantos bombistas suicidas eram mais não sei quê, antes de serem bombistas suicidas? professores? mães? pais? irmãos? soldadores e moldadores e trabalhadores indiferenciados e médicos ou jornalistas ou antropólogos e geriatras cansados de aturar a morte do mundo enquanto aturam a morte dos homens; não. tu só estás assim por causa do velho e por causa dela também; não finjas que tens em ti os problemas todos do mundo, porque não tens; e a pior imoralidade do mundo é ser-se assim, um mártir, coitadinho do mártir… Isso, miúdo! estás a chegar lá, entendes? O economista motivava H. Desistir é para os falhados, ok? Levanta-te, miúdo! o mundo não precisa de ti mas tu precisas do mundo, toca a fazer pela vida, rapaz! levanta-te mais cedo, sim! mais cedo; os vencedores levantam-se mesmo muito cedo porque assim têm mais tempo para vencer; e deitam-se bem tarde, pelo mesmo motivo; e comem comida de merda ao almoço porque almoçar é o ópio das massas laborais e jantam no escritório a não ser que o cliente queira jantar fora e aí não tenhas medo de investir, sim, investir tempo e dinheiro, o cliente tem sempre razão.